sábado, 23 de janeiro de 2010

Cruzes existem em abundância: quando a doutrina da cruz será pregada?

Henry Martyn (1805)

O mar estava muito bonito, como se fosse cenário romântico. A cidade lembra Funchal (capital da ilha da Madeira). Nas ruas, homens negros, com visível desagrado, carregavam pipas de madeira, e mulheres negras carregavam peixes, frutos etc. As coisas expostas à venda eram tartarugas, bananas, laranjas, limões, melões, mamões, tamarindos.

Subi a uma elevação e vi um homem parado ao lado do caminho, segurando o pedaço de um prato de prata, de formato oval. Ele recitava algumas palavras sobre Santo Antonio. Alguns dos que passavam beijavam o objeto que ele segurava, enquanto outros apenas tiravam seus chapéus para ele. Tive a impressão de que o próprio homem parecia ridicularizar o ato insensato dos transeuntes em relação ao objeto.

Em certa igreja, a missa estava sendo celebrada. Não era tão esplêndida como as celebradas em Madeira. Muitos dos padres eram negros. Do lado de fora dava para ver toda a bonita baía. Foi quando me lembrei do hino “Oh, tristes morros de escuridão”. Então eu disse para os meus botões: “Que feliz missionário será enviado para proclamar o nome de Jesus a estas regiões ocidentais? Quando será que esta linda terra se libertará da idolatria e do cristianismo espúrio? Cruzes existem em abundância, mas quando a doutrina da cruz será pregada?”.

Continuei meu caminho em busca de um tronco de árvore no qual pudesse me assentar. Finalmente, cheguei a uma magnífica varanda. O portão estava aberto e eu fui entrando. Quando percebi que o caminho me levava a uma casa, virei à esquerda e me encontrei dentro de um pomar. Ao ver que alguns escravos me observavam, resolvi me dirigir à entrada da casa. Lá encontrei um homem muito receptivo. Pouco depois, chegaram um jovem e uma jovem, ambos muito acolhedores. Ao saber que eu havia estudado em Cambridge, o rapaz, que havia sido educado numa universidade portuguesa, tornou-se mais receptivo ainda. Tivemos uma boa conversa e fizemos um bom passeio pela fazenda dele. Conversei com ele em francês e latim. A família me convidou a voltar quando bem o desejasse.

Voltei à fazenda de Antonio José Corre. Ele me recebeu com a mesma cordialidade, ainda que nos tivéssemos conhecido há tão pouco tempo. Provei alguns pratos típicos, vi muitas árvores frutíferas e os escravos trabalhando. Fiz um passeio com ele pela cidade. Visitamos o monastério dos carmelitas. Vi Antonio José fazer o sinal da cruz nele mesmo. Fiquei surpreso, mas não falei nada. Ali me encontrei com um padre. Como era a primeira vez que eu estava na companhia de um sacerdote católico romano, falei com ele em latim. Porém, ele me pareceu embaraçado, vermelho de vergonha, e disse que não falava latim. Fiquei triste por tê-lo colocado sem querer em uma situação difícil.
No quarto em que me hospedei na casa de Antonio José, um escravo lavou meus pés. Fiquei impressionado com o grau de humildade expresso nesse ato. Enquanto ele segurava meus pés na toalha, com sua cabeça inclinada para baixo, eu me lembrei do Senhor e orei: “Que eu tenha a graça de imitar diante de ti a humildade desse escravo”.

Num desses passeios, passamos por uma pequena igreja, cujo terreno era cercado por paredes. Naquela área eram queimados os cadáveres que vinham de um hospital próximo, todos vítimas de uma doença de pele chamada “morfeia”. O que é essa doença, não consegui descobrir. Na igreja, todos os três que estavam comigo fizeram o sinal da cruz em si mesmos. Eu não disse nada. Mas a partir disso, uma conversação começou entre nós, sobretudo porque o senhor José Antonio mencionou a eles minha objeção àquele gesto. O major que nos acompanhava argumentou com muita veemência. Antonio José atuou como intérprete. Baseando-me continuamente nas Escrituras, dei imediatas respostas. O velho major acabou me abraçando à maneira de seu país. José Antonio aproveitou para dizer que, em secreto, para não contrariar o pai, ele orava só a Deus e não aos santos. De minha parte, esperava mais da parte dele: era mais a confissão de uma mente liberal do que de uma mente religiosa.

Logo depois, vimos uma procissão de padres. Dois dos que estavam comigo se ajoelharam até a procissão passar. Como Antonio José disse que “se conformava com os costumes do país em suas coisas não muito significantes”, falei para ele que, se eu tivesse nascido português, preferiria, a exemplo dos reformadores ingleses, ser levado para a prisão ou para a fogueira, em vez de me conformar com a idolatria. Ao mesmo tempo, mencionei para ele a doutrina do “novo nascimento”. Mas ele não parecia prestar muita atenção. Quando Antonio José me perguntou se nossos soldados tinham um ministro para atendê-los em seus últimos momentos de vida, para instruí-los e consolá-los, foi a minha vez de corar de vergonha. Não soube explicar tão grande negligência entre os protestantes.

Nessa mesma ocasião, encontrei-me com um franciscano e me dirigi a ele em latim. A língua não foi embaraço nem para ele nem para mim. A certa altura, pedi a ele que me provasse pelas Escrituras as doutrinas do purgatório e da transubstanciação, bem como as questões das imagens e da supremacia do Papa. Os argumentos dele foram extremamente fracos e o Senhor me deu reposta para cada um deles. Durante nossa conversa, dois ou três outros religiosos do hospital se juntaram a nós e passaram a participar da nossa disputa. Um grande grupo de outros religiosos, passando pelo lado oposto ao nosso, acenou para eles e pediu que encerrassem a discussão, o que eles fizeram levando-me para uma sala mais retirada. Então conversamos muito. Eles pareceram surpresos com meus conhecimentos das Escrituras. Um deles, o que falava francês e também quem melhor falava latim, ficou muito bravo durante a disputa. Era sem dúvida o mais sincero de todos. Eles me perguntaram quando eu poderia voltar, para que me esperassem.

Demorei tanto em terra que perdi o barco de volta para navio. Tive de retornar à casa de Antonio José, onde fui muito bem recebido e onde também me ensinaram algumas palavra em português.

Quando me despedi da casa do senhor português, o pobre escravo Raimundo, que cuidou de mim e carregou minhas malas, começou a chorar. Enquanto eu me ia, ele veio para beijar meus pés. Mas eu lhe dei as mãos e nos despedimos de mãos dadas. Fui embora muito impressionado com a gentileza de pessoas para as quais eu era um completo estranho apenas poucos dias atrás. Sou agradecido a Deus por essa tão grande misericórdia.

Em meu caminho, encontrei um jovem padre franciscano com o qual conversei em latim. Quando eu lhe disse que em nenhuma parte das Escrituras era dito que se deveria adorar a Virgem, ele ficou vermelho e falou em voz baixa: “Verum est”.

No monastério, voltei a me encontrar com os mesmos quatro religiosos com os quais eu havia tido uma longa conversa. Depois de me dar guloseimas para comer, retomamos a disputa anterior. Eles tinham queixas de mim e eu deles. Fui embora dali muito triste ao ver como o evangelho pode ter tão pouco ou até mesmo nenhum efeito sobre eles. Este sentimento de tristeza não diminuiu quando eu cheguei no navio. Os tripulantes muçulmanos, vestidos em branco, cantavam hinos em honra a Maomé para comemorar a Hégira (a viagem de Maomé de Meca a Medina, no ano 622 depois de Cristo). Aqui estava outra abominação.

Um deles assentou-se ao meu lado e tivemos uma longe conversa. Depois, fui embora e clamei a Deus que interferisse em favor de seu evangelho.

No curso de uma hora, eu havia visto três chocantes exemplos do reino e poder de Satanás, na religião do papa, de Maomé e do próprio homem. Nunca antes eu havia percebido o quanto eu não era nada. Todos os meus claros argumentos não servem para nada. A menos que o Senhor estenda suas mãos, eu falo para pedras. O que eu senti, no entanto, não foi desencorajamento; simplesmente vi a necessidade da dependência de Deus!


(Adaptado de “Life and Letters of the Rev. Henry Martyn”, de John Sargent, publicado em Londres em 1862)


Fonte: Ultimato Janeiro/Fevereiro 2010

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