quarta-feira, 16 de abril de 2008

Cristianismo na China

Jayme Martins


Os comerciantes venezianos Nicoló e Matteo Polo respectivamente pai e tio de Emilione, vulgo Marco Pólo, estiveram na China na década de 60 do século XIII, tendo permanecido por alguns anos na corte do imperador Kubilay Khan. Ao regressar a Veneza, foram portadores de uma carta do Grande Khan ao Papa Clemente IV, pedindo informações do mundo cristão e o envio de missionários para difusão da fé cristã no Oriente. A imperatriz chinesa, que era cristã (!), encareceu-lhes, que, de volta à China, passassem por Jerusalém e lhe trouxessem um frasco de óleo bento da Igreja da Natividade.

Acontece que, quando os irmãos Polo chegaram a Veneza, o Papa havia falecido. Após esperarem por vários anos, como a escolha de um novo titular do Vaticano não se decidia, eles retornaram à China em 1271, desta vez com o jovem Marco. Ao passarem pela Palestina, inteiraram-se de que o bispo de Jerusalém havia sido designado Papa – Gregório X. Fizeram-lhe entrega da carta do imperador chinês e o novo Papa designou dois sacerdotes, a fim de acompanhá-los para empreender a tarefa de evangelização na China. Haveria muito a dizer a este respeito, mas vamos nos limitar apenas a um detalhe: como se explica que, a essa altura da História, a Imperatriz chinesa fosse cristã?

No Concílio de Éfeso (431), Nestório, bispo de Constantinopla, foi condenado por negar à Virgem Maria a denominação de Mãe de Deus. Longa polêmica, que já atravessara o Concílio de Nicéia (325). Nestório admitia apenas o título de Mãe de Cristo, pois distinguia em Jesus dois componentes: o Verbo (Deus) e o homem. E pretendia que Maria fosse tão somente mãe do homem e não de Deus. Para a maioria dos bispos, estava em causa a questão da unicidade da pessoa de Jesus.

Divergindo de Roma, Nestório e seus discípulos constituem uma das origens da Igreja Ortodoxa, um dos três grandes ramos do Cristianismo. Eles tiveram grande êxito na pregação do Cristianismo na Ásia Central. O reino dos Tunguts, por exemplo, uma das primeiras conquistas de Genghis Khan, era um reino cristão, de influência nestoriana. Morto o rei pelas tropas mongóis, Genghis Khan tomou para si a rainha como sua esposa. Teria sido essa a origem da tradição cristã na corte chinesa da dinastia Yuan (1279-1368), cujo fundador foi Kubilay, neto de Gengis. A exemplo de seu avô, que teve como orientador político, filosófico e religioso o famoso monge taoísta Shan Dong, Kubilay era um monarca bastante liberal no plano cultural.




quarta-feira, 2 de abril de 2008

Perpétua e Felicidade


Délnia Bastos

Era o início do terceiro século. O Império Romano tinha se fortificado em toda a região do Mediterrâneo. A sociedade gozava de estabilidade e privilégios — entre eles o de assistir aos jogos realizados no anfiteatro. Este compunha-se de uma estrutura oval, com algumas jaulas laterais para as feras, a arena no centro e um pequeno templo debaixo da arena. Ali, os gladiadores pediam as bênçãos dos deuses romanos para suas lutas, ao mesmo tempo em que os condenados pelo rei aguardavam sua sentença. Ao redor da arena, havia uma espécie de arquibancada para o público assistir confortavelmente aos espetáculos.

Naquela época, o imperador Sétimo Severo baixou um edito segundo o qual todos deveriam oferecer sacrifícios aos deuses romanos e ao próprio imperador. O infrator era sentenciado, juntamente com outros criminosos.

Vívia Perpétua, uma jovem senhora da nobreza, e sua empregada Felicidade eram cristãs. Aos 20 anos, grávida, Perpétua foi condenada, juntamente com Felicidade e mais três cristãos, por desobedecerem ao edito imperial. Em vão o pai de Perpétua tentou várias vezes convencê-la de desistir da fé e sacrificar aos deuses. “O que será do seu filho?”, o pai a advertiu, sem sucesso.

Assim, em 7 de março de 203, foi dado o veredicto final: “Perpétua, Felicidade, Revocato, Secúndulo, Saturnino e Saturo são condenados às bestas no Anfiteatro de Cartago”. Segundo a história, Saturo não estava entre os condenados, mas voluntariamente compartilhou do martírio de seus irmãos em Cristo. Perpétua havia feito um pedido especial a Deus, e foi atendida: deu à luz no dia anterior à sua morte e uma amiga cristã adotou seu pequeno filho.

Os condenados deveriam usar uma roupa designada para o espetáculo. Cada roupa fazia menção a um deus romano, de modo que o sentenciado era oferecido como sacrifício àquele deus. Perpétua e Felicidade, e depois seus companheiros, se negaram a usar a “roupa festiva”, como que num último fôlego de testemunho — nem mesmo sua morte se tornaria oferenda para os deuses. Eles entraram na arena com pouquíssima roupa, mas com um brilho e uma alegria de espírito humanamente inexplicáveis. Todos eles tinham consciência de que sua morte seria um testemunho público importante para o avanço da fé cristã. Felicidade dizia que seu martírio significava para ela não a morte, mas um segundo batismo.

Os homens foram os primeiros a entrar na arena. Dois deles deveriam passar por uma ponte com uma série de obstáculos, entre os quais algumas feras, como leões e tigres, até que chegassem aos gladiadores. Secúndulo morreu na prisão, antes mesmo de chegar à arena. Saturnino foi decapitado e os outros dois morreram durante o espetáculo.

Por último, entraram a jovem senhora e sua companheira. Para elas, foi designada uma bezerra, que investiu primeiramente em Perpétua e em seguida avançou para Felicidade. Perpétua, após recobrar a consciência, ajudou Felicidade a se levantar. Conta-se que escorria leite daquela que amamentara apenas um dia seu filhinho recém-nascido. Elas foram retiradas da arena feridas, para serem mortas pelos gladiadores. A platéia estava exaltada. Queria mais, e exigiu que a morte fosse pública. Elas então morreram na arena, pelas espadas dos gladiadores.

Esta história comovente certamente nos lembra a passagem bíblica que diz: “Eles, pois, venceram [Satanás] por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida” (Ap 12.11). Segundo Tertuliano, o sangue dos mártires é a semente da igreja. Com efeito, o sangue de Perpétua, Felicidade e de seus irmãos em Cristo foi a semente da igreja no Norte da África. Sua morte deveria ser um presente do imperador Severo para seu filho César Geta. Mas foi muito mais um presente para a igreja.

Os poucos cristãos que vivem naquela região felizmente não estão mais sob o jugo opressor romano. Mas precisam da mesma ousadia e fé para “enxergar além do véu” e enfrentar os obstáculos de oposição e perseguição a que ainda estão sujeitos hoje.

Fonte: Revista Ultimato (março- abril 2008)